As limitações da legislação
A Lei Maria da Penha foi criada para conferir maior proteção às mulheres vítimas de violência doméstica. Neste ano, a Lei completou 16 anos e ainda causa confusões interpretativas quanto a sua aplicação.
Primeiramente, é necessário que o sujeito passivo – vítima – seja mulher, contudo, não basta ser mulher para sua incidência. A conduta deve ocorrer em um contexto de violência doméstica, familiar ou relação íntima de afeto. No caso concreto, também há que se avaliar a existência de vulnerabilidade de vítima, que comumente é verificado em razão da própria desigualdade de gênero.
A relação íntima de afeto engloba maridos, ex-namorados, ficantes, companheiros. Citamos aqui a tese julgada em Habeas Corpus ( HC 310.154/RS, DJe 13/05/2015) que explicita a abrangência:
Estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica e podem ser vítimas da ação delituosa as esposas, as companheiras ou amantes, bem como a mãe, as filhas, as netas do agressor e também a sogra, a avó ou qualquer outra parente que mantém vínculo familiar ou afetivo com ele
A confusão jurisprudencial se opera, principalmente no que tocante a atuação do órgão acusatório, quando o sujeito ativo e passivo (autor e vítima), pertencem ao mesmo gênero. Isso porque, nestes casos, não se aplica, ou não deveria se aplicar, a presunção de vulnerabilidade que é ínsita à violência doméstica . Assim também entende os tribunais superiores :
“(..) A Lei Maria da Penha foi instituída para coibir a violência contra a mulher praticada no âmbito doméstico e familiar, consolidando-se como um dos instrumentos mais eficazes de proteção à mulher, vindo ao encontro dos demais mecanismos previstos pelo legislador constitucional para resguardar boa parte daqueles que se encontra em situação de vulnerabilidade no sistema jurídico, como a criança e o adolescente, o idoso e o deficiente físico, dentre outros. Insere-se no rol das medidas criadas para minimizar as desigualdades sociais e, com isso, conferir eficácia aos princípios basilares do ordenamento pátrio, a saber, os princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia. Sua aplicação, portanto, não é feita de forma indistinta. Alcança as relações em desequilíbrio, onde uma das partes está em condição inferior à outra, por fragilidade ou hipossuficiência, necessitando de uma proteção especial. No caso em exame pode-se afirmar que a suposta prática de crime de lesão corporal não foi baseada no gênero da vítima, mas sim derivou de discordância acerca de divergências políticas e empoderamento feminino. Note-se que no dia dos fatos o acusado e a vítima já haviam se desentendido sobre os assuntos numa confraternização familiar e naquela oportunidade, conforme afirmado pela própria N. os familiares apaziguaram os ânimos.”
Acórdão 1301275, 07179449520208070003, Relator: JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA, Segunda Turma Criminal, data de julgamento: 12/11/2020, publicado no PJe: 23/11/2020.
A aplicação irrestrita da Lei reveste-se de especial gravidade, isso porque as medidas previstas são mais rígidas, logo, um delito passível de apuração em juizados especiais, não deveria estar sob a égide da referida legislação. O crescente número de casos no judiciário, prejudica a celeridade pretendida pelo legislador, comprometendo a integridade da própria vítima de violência doméstica.
Desta sorte, a adoção de legislação menos branda, afasta a aplicação de medidas despenalizadoras, como composição dos Danos Civis, Representação, Transação Penal e Suspensão Condicional do Processo. A desigualdade de gênero não pode ser automaticamente aplicada, por exemplo, quando o ato envolve tias e sobrinhas, mães e filhas, noras e sogras, amigas que convivem na mesma residência sob pena de tornar uma legislação de suma importância em mais uma ferramenta de punição irrestrita.